Uma vida em Porto Alegre
Sobre minha adolescência, uma cidade, política e padrões de beleza
Eu sou gaúcha. Vivi 21 anos em Porto Alegre e confesso que não tenho a melhor das relações com a cidade, com o estado. Muito machismo, muito racismo, muito bairrismo, e, nos últimos anos, um antipetismo-antiesquerdismo preocupante. Concordo com muitas das críticas, mas ai de quem falar de Porto Alegre como se sempre tivesse sido assim. De lá vem minha formação cultural e de esquerda, sediamos o Fórum Social Mundial, elegemos quatro prefeituras de esquerda nos anos 90/2000, temos Olívio Dutra e Manuela D’Ávila, somos o berço do MST, enfim, temos os fascistas hidrofóbicos sim, mas, historicamente, somos resistência.
E tenho uma juventude inteira lá. As aulas que matava pra ir ver filme no Cine Baltimore (hoje tristemente um centro comercial com o mesmo nome). Os showmícios em que meu pai tocou e que despertaram a importância da política para a cultura pra mim. As horas passadas na Casa de Cultura Mário Quintana. Minha adolescência cachaceira na Oswaldo Aranha e no Bar do João, no Lola, os xis da Lancheria do Parque, meu primeiro trabalho sério aos 19 anos na Casa de Cinema de Porto Alegre, o reconhecimento precoce do meu talento pelo Nao-til, onde publiquei meus primeiros textos ainda menor de idade. O CardosOnline, que mudou minha vida e me fez começar a ter leitores, muitos que me acompanham até hoje. De nada disso eu esqueço, Porto Alegre, você foi a mãe do meu talento, mas foi em São Paulo, minha madrasta sortuda, que me estabeleci como profissional nas letras. Aos 21 me piquei pra cá e cá estou. E provavelmente, cá ficarei.
Mas quero falar de outra coisa: minha construção como mulher considerando o Rio Grande do Sul como referência. A terra onde a figura do folclore se chama: prenda. Uma coisa, né? Na minha época, a mulher gaúcha ideal era uma modelo com 1,90, 20 quilos a menos que a altura e, de preferência, muda e sem opinião. Um sorriso branco na coluna social, um acessório. Não um ser humano. Claro que haviam as rebeldes, como a radialista Kátia Suman, mas só fui ficar mais íntima depois dos meus 20 anos, quando minha personalidade já estava em fogo. Minha mãe, a maior entusiasta do meu trabalho, me dizia, e hoje eu entendo: não seja como as outras. Não eram as outras pessoas-mulheres, com as quais eu não me identificava. Elas não eram minhas inimigas; era o modelo de mulher que a sociedade impunha. Eu estava fora do padrão rígido de beleza, mas estava longe de ser foríssima do padrão. E isso me confundia nas relações. Depois que eu fui entender que poderia ser a princesa que fosse (e jamais fui, e jamais serei), mas era o meu padrão de comportamento que me tornava tão diferente, um misto de personalidade inerente a mim, ensinamentos da mãe e revolta com a sociedade. Uma coisa meio “um dos caras”. Mas eu não queria ser um cara, eu só queria ter a liberdade e a autonomia que eles desfilavam pela vida. E, é claro, eu não estava imune a querer ser aceita e amada, e logo cedo desenvolvi transtornos alimentares como bulimia e anorexia, vício em remédios para emagrecer que me mantinham, eu bipolar ainda não diagnosticada, em constante mania. Foi ótimo pra escrever e péssimo pra minha vida. Eu sei que o mundo inteiro esmaga mulheres com pressão estética, mas é só falar com minhas conterrâneas pra saber: lá é pior. Ou era. Espero que tenha mudado. Mas o mundo não mudou, né? Vemos aí o desejo mimético da belexa dos anos 90 voltando e fodendo a cabeça das mulheres, ozempic sendo usado como água para atingir esse padrão excludente… Tudo isso amplificado pelas redes sociais adoecidas. É difícil ser mulher lá, mas, sobretudo, e difícil ser mulher hoje.
Falando assim, parece que minha vida lá foi horrível, mas não. Eu tenho a sorte de vir de uma família de artistas e minha arte foi incentivada desde pequena, com visitas à Feira do Livro de Porto Alegre, minha época preferida do ano, quando eu podia sair com pilhas e pilhas de livros com até 90% de desconto. Posso dizer que foi essa feira que formou a escritora que sou hoje, junto com minha mãe, uma entusiasta da leitura, e meu pai, que me proporcionava um ambiente permeado por arte, camarins, peças, shows e liberdade. Fui muito livre. Coisa que talvez não pudesse ser em uma cidade maior. Vivi a liberdade na adolescência como poucos. Eu só poderia ter vindo de lá. Ao mesmo tempo que temos a tal prenda, temos a assertividade da mulher gaúcha que sabe que precisa se impor diante de um mundo patriarcal, e com essa faca na bota eu já nasci.
Espero que minha cidade se reconstrua mais linda do que já era, que elejam a Maria do Rosário para a prefeitura e que jamais vendam a cidade a empreiteiras novamente. Em tempo: FORA MELLO E FORA LEITE. Péssimos.
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Na semana passada teve lançamento do primeiro livro traduzido do poeta Dan Fante no Brasil, “Cara a cara com os nebulosos olhos de Deus”, pela editora 55. Tive o prazer e a honra de escrever o posfácio, que divido aqui com vocês.
Coração de escritor
Dan Fante é um daqueles poetas raros e verdadeiros como tantos por ai tentam ser. Nas veias dele corria o sangue de John Fante, meu eterno preferido, maldito em sua época, só reconhecido depois de morto, fato que Dan(pra mim somos íntimos, vou chamar pelo primeiro nome) narra em uma de suas poesias: “eles estão cinquenta anos atrasados”. Das suas linhas jorra a mais pura poesia visceral, aquela que bate no estômago.
Chegamos a trocar e-mails, eu e ele, lá em 2002. Traduzi a parte do Máquina de Pinball, meu primeiro livro, que falava dele e de seu pai, sobre escrita com verdade, pulsante, real, e enviei para um endereço eletrônico que encontrei nem sei como. Ele gostou muito e me mandou um conto chamado “Short Dog”, publicado depois em 2006.
E me deu um conselho que levei pra vida.
“Keep writing, the rest is bullshit”.
Continue escrevendo, o resto é besteira.
Ele claramente tomava esse conselho para si. Dá pra sentir em suas linhas aquilo que só quem vive pra escrever consegue expressar. Ouvi seu conselho. Se eu tivesse tratado a literatura como algo secundário certamente estaria em um lugar diferente na minha vida, talvez morando melhor, talvez comendo melhor, talvez sem dívidas e com o nome limpo, mas não seria uma autora como eu acredito que devem ser os autores. Fiéis ao seu amor a escrita. João Antonio, o grande escritor brasileiro, escreveu em seu conto autobiográfico Abraçado ao Meu Rancor: sua arte não permite dois amores. João Antonio foi um autor consagrado e também era jornalista. Fala, neste conto, sobre o desgosto com São Paulo, com o que a cidade se tornou. Dan escreve sobre a Los Angeles longe dos holofotes, de seu tempo de taxista, sobre fracassos, cafés ruins, bebidas baratas, lembranças de infância, mas nada disso é clichê pois tem vida, flui, palpita. Ele escreve muito sobre seu pai também, putíssimo com o reconhecimento tardio que aquele gênio, que morreu cego e sem pernas devido à diabetes, tem agora. Transparece o orgulho que ele tinha do pai e da herança literária, seu coração de escritor, que John Fante deixou.
Dan Fante escreve sobre o furacão que vive em cada escritor atormentado, as palavras dançando na cabeça, a máquina de escrever como única opção, a solidão e um pouco de loucura. Não acredito em fórmula, acredito em sangue. Espero que tenha sentido o pulsar quente dessas poesias como eu senti.
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