Sim, nós estamos com raiva
Sim, nós estamos com raiva.
Como não estar?
São gerações e gerações de mulheres tratadas como objeto, como propriedade, como mão de obra escrava. São séculos de silenciamento e ridicularização, são vidas e vidas diminuídas, palavra ignorada, existência abafada.
É claro que estamos com raiva.
Chega a ser engraçado quando vem um e diz: nossa, mas as feministas são tão raivosas... Precisa? Meu amigo, você acha que se reage a opressão pedindo por favorzinho? Nossa, vocês nos oprimem, violentam, calam há centenas de anos, será que poderiam parar agora, por favorzinho? Não funciona. Precisamos ser incisivas e ainda repetir, e ainda corremos o risco do sujeito ao lado copiar nossa fala palavra por palavra e ser aplaudido enquanto somos execradas.
É óbvio que estamos com raiva.
Passamos raiva em casa, no trabalho, com a família e na rua. Passamos raiva quando tentamos apenas tomar um drink sentadas num balcão, uma cerveja numa mesa de plástico, passamos raiva quando nossos chefes diminuem nossas ideias, veja só, nossos "superiores", e passamos raiva também quando vemos outras mulheres reproduzindo essa lógica de que as outras são inferiores e que elas são flocos de neve especiais, as escolhidas do patriarcado para sentar no banquinho dos coadjuvantes. Passamos raiva quando vemos nossas mães julgadas, seja pela família, por seus companheiros, seja pelos vizinhos fofoqueiros ou pelo empregador por tentarem viver suas vidas como acreditam, isso quando conseguem acreditar em alguma coisa e não vivem sob a sombra do medo de tentar viver como acreditam. Medo de que? É só fazer, diriam os que jamais sentiram a mão da opressão sobre seus ombros dizendo que não, não é adequado, não, não pode fazer, não, não pode, não pode, não pode.
Passamos raiva quando de repente vemos as tarefas domésticas delegadas a nós, ou ao menos deveríamos passar: alguém me mostra no relógio que horas o trabalho do companheiro ficou mais importante do que o nosso? Ah, porque ele possivelmente ganha mais? Quem ganha mais, compra o tempo? Assim fica difícil de se dedicar a qualquer coisa, estudo, trabalho, cerâmica que seja, fica difícil.
E também quando julgam nossa vida sexual, querem o que? Alegria e fogos de artifício? Se sai com quem quiser é vagabunda, se não se contenta com migalhas caídas de um saquinho de lixo e não quer sair com ninguém é encalhada, e se casa com homem tem que seguir todo aquele conjunto e regras da mulher de bem, mesmo quando ele compra o pacote sabendo que você não segue a forminha, e quando casa com mulher é porque né, não encontrou um homem de verdade para formar uma família.
Já deve ter gente de pé batendo no peito e dizendo: mas nem todo homem! Claro que nem todo homem, estúpido. Uau! Ele faz o mínimo! Ele trata mulheres com respeito e lava suas próprias cuecas, ele concorda que mulheres devem ganhar os mesmos salários executando as mesmas funções, ele acredita que a responsabilidade de criar filhos é de ambos os genitores! Construam uma estátua para esse herói!
Estamos com raiva e estamos exaustas. Repetir e repetir obviedades à exaustão nos deixa cansadíssimas, mas vem cá, me dá a sua mão: não podemos esmorecer. Nossa raiva precisa nos mover, não nos consumir ou paralisar.
Às vezes o que paralisa é não saber de onde isso tudo está vindo. Às vezes dar nome e identificar o inimigo é o que nos dá forças e nos traz para a trincheira certa. Ninguém nasce feminista e o inimigo não é o homem enquanto indivíduo, mas a masculinidade que ele reproduz. O machismo é anterior a nós; nascemos neste mundo e já está tudo bagunçado, os lugares pré definidos e um bando de gente querendo manter assim pois é assim que é e é assim que é e foi assim que foi sempre e deixa assim que funciona. Não, não deixa porque não funciona pra todo mundo. Aliás, não funciona pra ninguém, porque essas regras cagam a vida de todo mundo. A masculinidade tóxica reproduzida pelo macho hetero topzera também tem que acabar. Ou é legal falar pra uma criança que sequer desenvolveu o desejo que tem que ser pegador, que tem que dar beijinho, que tem que tratar mulher feito objeto, que não pode chorar, que tem que ter culhão, que não pode ser "mulherzinha" porque tudo relacionado ao que entendem como feminino é fraqueza e termina em chacota? Ou, como diz um poderoso e notório imbecil dos nossos tempos, tem que dar um cacete pro filho parar de ser meio viadinho? Não tem não, não tem nunca, isso é um absurdo. Ninguém nasce performando masculinidade ou feminilidade, tudo isso é ensinado de uma forma violenta e excludente com o respaldo de religiões que usam a bíblia, a bíblia! como referência de comportamento, mas apenas quando convém, é claro, afinal, quem é que segue a bíblia de cabo a rabo? Nem os padres, nem os pastores e muito menos os políticos, mas é muito conveniente usar trechos distorcidos para respaldar preconceitos e mais preconceitos espalmando a mão na capa do livro sagrado lá deles e dizendo que é a palavra de deus. E deus deve espalmar a mão na cara sagrada dele e dizer mas o que eu fui fazer, eles não entendem nada do que eu digo, olha aí, fazendo guerra e matando gente no meu nome, não era nada disso, que burrice.
E espalhar a burrice e o medo é mesmo o que os detentores do poderzinho querem, quando mais medo de ser o que somos, maiores eles ficam, eles se alimentam de medo, eles querem que o medo vire ódio e é isso que eles pregam. Ódio, intolerância ao que consideram diferente e que não cabe nas caixinhas que eles conhecem ou admitem.
O que fazer com toda essa raiva, então?
É um sentimento poderoso e perigoso. Grandes grupos de pessoas tomadas pela raiva já fizeram grandes revoluções, mas também grandes cagadas, guerras, destruição, morte. Sorte que algumas de nós nem conseguem identificar essa raiva e vão, elas mesmas, se envenenando, envenenando os filhos, o marido, a família. O mundo.
Temos o direito de sentir raiva, sim.
Já sofri violência sexual e sofri com inúmeras formas de machismo abertamente na internet e na televisão. Mil outras coisas que não vêm ao caso abrir.
É claro que estamos com raiva.
Mas é minha responsabilidade, como comunicadora, não apenas espalhar essa raiva. E isso é fácil de fazer. São tantas mulheres com raiva, tantas, e quando uma fala, todas as outras querem gritar junto. Grandes movimentos saem daí, mas, depois de muito tempo vendo movimentos e movimentos lentamente conseguindo direitos no grito, parei e pensei: não tem outro jeito? Não é possível que não tenha outro jeito.
Se o problema do machismo é a estrutura, é dela que precisamos falar, e entender que cada coisa que nos acontece, cada violência, cada "bobagem", como gostam de diminuir aqueles que jamais sentiram essa raiva, cada uma dessas coisas tem relação com a estrutura.
"Mulher serve para que? Para casar e ter filhos. O que é que toda a mulher quer da vida? Casar e ter filhos. De que modo uma mulher se sente realizada? Casada e com filhos. Dogma: fora do casamento não há salvação. Falou, tá falado" (Carmen da Silva, em Histórias híbridas de uma senhora de respeito).
Se lhe parece absurdo que, ainda hoje, isso seja realmente um dogma, é só observar quais são os principais "xingamentos" contra feministas: mal amada, mal comida, falta de homem etc etc. Porque é claro que uma mulher não existe sozinha e nada do que ela produz é relevante a não ser que ela tenha ao seu lado um... homem.
"Ninguém pergunta o que ela realmente é, ninguém quer saber de seus sonhos, suas fantasias, suas ambições, ninguém lhe dá a mínima chance de olhar em torno e vislumbrar outras possibilidades, outros caminhos. Ela pode carregar em si o potencial de um Shakespeare, um Michelangelo, um Einstein, um Beethoven, um Stanislawsky, ninguém está querendo saber nada, não interessa o que a mulher pode ter na cabeça e sim o que ela tem ou terá no ventre. Ou melhor, interessa sim, mas é pra sufocar. No momento em que mulher começar a meter o bedelho em campos que os homens reservaram para si - e muito pior se ela meter um bedelho genial, como às vezes acontece - o mundo vira de pernas para o ar: afinal, Michelangelo ou Shakespeare de saias, ainda que as saias sejam só simbólicas nesta época de indumentária unissex. seria o cúmulo do ridículo. Cada macaco no seu galho, e galho de mulher é rasteiro feito pé de abóbora, que só dá fruto rente ao chão".
Carmen da Silva de novo, circa 1985. Que exagero, não é mesmo? Não. Rebecca Solnit, em seu livro "A mãe de todas as perguntas", conta que, certa feita, há alguns dez anos, foi dar uma palestra sobre Virginia Woolf e o assunto acabou descambando, diante de perguntas da plateia, para o fato de Virginia não ter tido filhos. Ora, filho quase toda mulher cisgênero pode ter. Mas os livros de Virginia só poderiam ter sido escritos por ela.
Eu, Clara, uma das autoras deste livro, tenho uma filha que não foi planejada. Estava no início do auge de minha carreira literária: meu primeiro livro estava sendo adaptado para o cinema e era constantemente convidada para entrevistas sobre minha (ainda ínfima) obra. Bom, considerando que uma das vezes tive que dar entrevista ao Antonio Abujamra com minha filha de 1 ano no colo pois não havia quem ficasse com ela, as perguntas em torno de minha obra (já que eu tinha parido e ESSA parte da existência estava coberta) giravam basicamente sobre se aquilo tudo tinha acontecido ou não.
Importa? Importa pra quem? Por que? E por que homens que usam a vida como matéria prima são vistos como gênios primorosos, ainda que se também se irritem diante da idiótica pergunta: "é autobiográfico"?
Sei, e sei porque vivo no meio, que a crença popular é de que toda a escrita de mulher é "confessional". Isso pode ter a ver com mil coisas, mas aposto meu útero que tem mais a ver com a ideia arraigada de que a mulher não é capaz de "criar" nada além de algo que sai de seu ventre.
E as artistas, dirão? E as cantoras, as cientistas, todas essas mulheres que arrasam no mundo moderno?
Pois vos digo: elas precisam ser dez vezes melhores do que o mais medíocre dos homens ao seu redor para que sejam minimamente levadas a séria.
É dessa estrutura que estamos falando. Da estrutura que coloca a palavra do homem acima da palavra da mulher, que coloca o trabalho do homem como mais relevante, que, historicamemte, invisibiliza o trabalho da mulher. Não precisa pesquisar muito para ver quantas cientistas, arquitetas, romancistas, programadoras e infinitas outras profissionais tiveram seus trabalhos apropriados por homens ou simplesmente precisaram abrir mão dos mesmos porque simplesmente não lhes era permitido assiná-los.
É essa a igualdade que buscamos: intelectual, política, social.
Não queremos tomar o poder, até porque, como bem disse a comediante Hannah Gadsby em seu stand up "Nanette", as mulheres são tão corruptíveis quanto os homens quando têm poder nas mãos.
Mulheres não são melhores que os homens. Este não é o ponto. Somos todos capazes de tudo, mas criados de formas muito diferentes; nossos papéis de gênero são definidos assim que nascemos, antes mesmo de decidirmos qualquer coisa sobre nós mesmos. O que você acha que acontece quando, desde a mais tenra idade, meninos têm seu pensamento lógico estimulado com brincadeiras e meninas têm sua, digamos, "humanidade" exaltada, sua capacidade de cuidar, de gerir? Nossas mentes são papeis em branco quando nascemos e tudo que aprendemos é chamado socialização.
Algumas feministas insistem que a socialização não falha e usam deste argumento para atacar as populações trans e não binárias, mas isso não passa de mais violência de gênero. A sociedade nos faz quem somos, mas, frequentemente, não somos o que a sociedade espera de nós, seja em performatividade do gênero (agir "como mulher" ou "como homem") ou mesmo em identidade de gênero (a genitália definindo se somos homens ou mulheres). Existem muitos espectros dentro desses dois extremos e não devemos e nem precisamos nos prender a eles.
Parem de destruir a humanidade dos meninos os ensinando a esconder os sentimentos, a ridicularizar comportamentos que não se encaixem no estereótipo do machão, de tolerar bullying com meninos "mais fracos". Parem de ensinar que eles devem ser fortes e dominantes, parem de incitar a homofobia, de ridicularizar as lágrimas, simplesmente parem.
É isso que cria homens sem empatia, possíveis agressores, homens que não conseguem se colocar no lugar de uma mulher, de qualquer mulher, pois quem não respeita alguma mulher, não respeita mulher alguma. Nem a mãe. Temer não é respeitar. "Ter sido criado entre mulheres" não é um diploma que livra homens do machismo. Ninguém está livre. Nem as mulheres. Sim, nós reproduzimos machismo, pois, como já disse lá em cima, ele é anterior a nós e é esta a estrutura que precisa ser mudada. Não ensinar meninos a tratar meninas como objetos, não ensinar meninas que a única e mais importante coisa sobre elas é sua aparência. Precisamos criar pessoas conectadas, com humanidade, com diálogo, não com rivalidade.
Crescendo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, eu e minha amiga queríamos PERTENCER ao universo masculino, como se, socorro!, vivêssemos em universos à parte! Existem especificidades, mas olhem em volta, habitamos o mesmo mundo, respiramos o mesmo ar, estamos nos mesmos lugares, mas não com as mesmas possibilidades diante das estruturas de poder. Meninas são rivais, elas se dividem para chamar a atenção masculina, seja pela aparência ou pelo intelecto. É ISSO que nos ensinam. Como se nossos corpos e cabeças estivessem desconectados. É uma coisa só! Pode dançar e estudar, pode usar reboco na cara e fazer doutorado, pode TUDO. Ou deveria poder. Deveríamos.
Porque, além de tudo, mulheres têm prazo de validade. E não estou falando apenas do prazo de validade dos óvulos, esses pedacinhos de outro que as mulheres com ovários carregam, porque é claro que faltam bebês no mundo e todas deveríamos engravidar... Mulheres, quando mais velhas ficam, mais invisíveis ficam.
Mulheres fora do padrão de beleza também só existem para serem ridicularizadas. E não falo sobre auto amor ou auto estima aqui, falo sobre acesso, sobre ter uma cadeira em que seu corpo caiba no cinema, uma MACA que suporte seu corpo se você for parir (história real: Rachel Patrício, dona de um estúdio de tatuagens e militante, teve que parir em uma MACA DE CAVALO no hospital público porque simplesmente não havia EQUIPAMENTO para seu corpo, e não, ela não deveria emagrecer para caber.
O mundo é que tem que mudar para abarcar todas as pessoas. Todas.
Quando falo isso tudo, não estou aqui falando contra os homens. Estou falando contra um sistema, uma estrutura machista, racista, homofóbica, transfóbica, retrógrada, que sim, nos deixa com raiva, mas não podemos existir apenas em contraposição a ela ou a algo ou alguém que é, dentro dessa estrutura, mais importante do que nós.
Queremos apenas existir.
E não vamos pedir licença.