"Enfim, irmãzinha, case e depois você me conta"
Um trecho de Carmen da Silva de arrepiar pela atualidade
"De mulher de alguém
a mulher de ninguém.
Assim é bem melhor",
Camila escreve (sim, ela escreve, e eu escrevo o que ela escreve) no Toureando o Diabo.
Eis um trecho da autobiogrrafia de Carmen da Silva, minha escritora preferida, mulher que eu gostaria de abraçar e agradecer por ter sido, ter escrito, ter falado e ter existido. Foi publicada no ano de 1984 e se chama:
Histórias híbridas de uma senhora de respeito
Mulher foi feita para quê? Para casar e ter filhos. O que é que toda a mulher quer da vida? Casar e ter filhos. De que modo uma mulher se sente realizada? Casada e com filhos. Dogma: fora do casamento não há salvação. Falou, tá falado. Ninguém pergunta o que ela realmente é, ninguém quer saber de seus sonhos, suas fantasias, suas ambições, ninguém lhe dá a mínima chance de olhar em torno e vislumbrar outras possibilidades, outros caminhos. Ela pode carregar em si o potencial de um Shakespeare, um Michelangelo, um Einstein, um Beethoven, um Stanislawsky, ninguém está querendo saber nada, não interessa o que mulher possa ter na cabeça e sim o que ela tem ou terá no ventre. Ou melhor, interessa sim mas é para sufocar. No momento em que mulher começar a meter o bedelho em campos que os homens reservaram para si - e muito pior se ela meter um bedelho genial, como às vezes acontece -, o mundo vira de pernas para o ar: afinal, Michelangelo ou Shakespeare de saias, ainda que as saias sejam só simbólicas nessa época de indumentária unissex, seria o cúmulo do ridículo.
Cada macaco no seu galho, e galho de mulher é rasteiro feito pé de abóbora, que só dá fruto rente ao chão.
Nenhum toque de genialidade em mim: apenas uma certa dose de inconformismo, rebeldia, tendência a nadar contra a corrente. Mas justamente isso é o que se precisa controlar: mulher rebelde é pior que a matemática de Ionesco: não leva somente ao crime, leva à subversão. E a subversão da ordem estabelecida, como dizem todo o santo dia nossos generais e seus acólitos civis, é a catástrofe maior: mil vezes a morte - principalmente a dos outros. Por mais que a ordem estabelecida seja uma boa merda.
Como de fato é.
Então, quando se aproximou de mim, montado num corcel de santas intenções matrimoniais, um cavaleiro absolutamente casadouro - correto, inteligente, jovem advogado com um futuro brilhante em promessa, boa família, bom caráter, tudo conforme o figurino e ainda melhor que a encomenda -, como é que eu fiquei?
Desvanecida, feliz, sentindo-me abençoada por Deus e embalada nos braços das Normas, das Exigências Sociais, dos Bons Costumes, de todas as cláusulas do Pacto e todos os artigos do Código.
Se eu o amava? Até hoje ainda não saberia dizer. Alex -, chamemo-lo assim - tinha uma rara delicadeza, uma cortesia envolvente, um senso infalível da palavra certa no momento exato, do gesto galante, da homenagem que lisonjeia e comove. Lábia é coisa que enrola qualquer uma: lábia com jeito de ser sincera, confirmada por atos cotidianos, torna-se irresistível. Seus sentimentos e atitudes me valorizavam, eu me sentia preciosa, uma orquídea entre as mãos de um jardineiro sábio e apaixonado. Ninguém me dissera até então que mulher é para ser gente, mesmo ao lado de um homem: haviam-me levado a crer que quando ela tem sorte e dá certo é jóia e flor, se dá errado é bagulho.
Assim, um destino de joia e flor era o que Alex delineava ante mim - e até que ponto é possível distinguir entre o amor e as expectativas que a sociedade nos enfiou na cabeça, o amor e a gratidão, o amor e o alívio do desencalhe, o amor e a exaltante sensação de estar recebendo de alguém identidade, segurança, redenção para todo sempre amém?
Nosso romance foi puro e certinho de dar asco. Ele não me olhava apenas com os olhos embevecidos do enamorado: também fixava em mim a mirada reverente de quem contempla a futura-mãe-de-seus-filhos. Fêmea-ventre santificado, depósito da espécie: eu corporificaria seus sonhos de transcendência, de duração, atrás de mim vinha um bando de Alexinhos, todos morenos, de olhos pretos, e pômulos, só faltava o colarinho engomado para serem o retrato do pai. Aquela missão sagrada me deixava meio sem alento, por momentos eu achava que podia desencarnar e voar aos céus, como a Remédios de Cem Anos de Solidão que, de tão angelical, se evolou nos ares.
Mas também o mundo, o diabo e a carne tinham seu quinhão, embora purificado, assexuado, passado por água - ou por vinho chileno, seria mais apropriado dizer, e a carne fosse representada por saborosos baby-beefs. Alex me levava todas as noites para dançar nos lugares da moda, depois para uma ceia tardia no Aguila ou no Cassoni, onde ficávamos às vezes até clarear o dia, com as mãos entrelaçadas sob a mesa, porque naquele então seria de mau gosto ousar expansões mais chamativas.
Enfim, eu saía, me divertia, participava de tudo, escoltada pelo mais gentil dos acompanhantes: era a vidinha que eu pedia a Deus enquanto esperava a Suprema Realização na vidinha que Deus ordenara para mim, como para toda mulher que se preza: esposa e mãe dos filhos de alguém que vai sair mundo afora conquistando seu lugar ao sol, enquanto mamãezinha, literalmente falando, fica em casa lavando fraldas e preparando mingaus. Panorama esse que, àquelas alturas, nem sequer me passava pela imaginação: a maternidade com que nos acenam vem cuidadosamente expurgada de seus aspectos prosaicos, o que nos mostram é puro Fra Angelico, a Madonna com o Bambino aureolado nos braços, desdobrando fibra por fibra o coração, rodeada por uma guirlanda de louros querubins, sem jamais perder o ar de êxtase. Seria impensável a Madonna arregaçada, agachada no tanque. Ou o Bambino com a boca aberta num desses homéricos berreiros que não acabam nunca e enlouquecem qualquer mãe.
E como era impensável, não se pensava. Ainda bem, porque como diz o ditado, quem pensa não casa. Eu andava pelas ruas com o passo leve, o queixo empinado e o coração transbordando de suficiência, plenitude, amor. E um dia, num curto intervalo entre um e outro estado de transe amoroso, que é a forma mais iluminada de imbecilidade aguda, algo pôs em funcionamento minha já meio embotada maquininha de pensar.
O fator desencadeante foi um personagem clássico, presença obrigatória em todas as historinhas de ciúme ou dramas passionais de que se tem notícia: um personagem chamado Outro Homem.
Só que eu, inocente de mim, não o via sob essa ótica. Para mim ele não era Outro e eu nem mesmo estava ligando para o fato de que fosse homem. Um conterrâneo, conhecido cordial, de família tradicionalmente amiga da minha, eis tudo. Chegou a Montevidéu e telefonou: trazia do Rio Grande encomendas para mim, cartas, retratos, presentes: podíamos jantar juntos? Não tinha sentido incluir Alex no programa, sua presença seria um constrangimento: íamos conversar num idioma que ele não entendia, sobre gente que ele não conhecia, e saborear fofocas provincianas que não o interessavam. Assim, expliquei-lhe o caso e ele reagiu com a elegância e o cavalheirismo de sempre.
Mas, no dia seguinte, o cavalheiro que me apareceu diante dos olhos era o da Triste Figura em plena crise hepática de moinhos de vento mal digeridos: vi Alex pálido, abatido, a faces terrosas, umas olheiras que chegavam até a cintura, uma expressão apalermada de zumbi. Fiquei alarmada: que acontecera, estava doente?
Sacudiu a cabeça com ar infeliz: não, nada, tudo, bem, problema nenhum.
Mas espera aí, e essas faces cor de abacate, essa pele tensa sobre os pômulos, essa aparência demacrada? um homem jovem e saudável não vira fantasma assim de
um dia para o outro sem motivo.
Alex escudou-se numa reticência ambivalente: não tinha nada, não havia nada, tudo corria normalmente. Embora ainda sem muita experiência das comédias masculinas (foi mais tarde, com René, que tirei o curso completo, com pós-graduação), eu já sabia reconhecer uma relutância fingida, uma negaça de pura coqueteria: e óbvio que, sob aquela frouxa atitude de deixa-pra-lá, Alex estava desejando que eu insistisse e lhe arrancasse a verdade.
Foi o que fiz: as mulheres sempre fazem o que os homens insinuam. Continuei perguntando até que, com um suspiro, ele se decidiu a falar - e aí, quem ficou sem fala fui eu.
Titubeando, com ar miserável, mexendo no nó da gravata como se lhe oprimisse o gogó, ele confessou a noite horrível que passara: em claro, sem fechar os olhos um minuto, revirando-se de um lado para outro de angústia. Tudo por causa do tal jantar com o amigo do Rio Grande.
Meus olhos se arregalavam feito pires: mas que história era essa? Então eu não tinha explicado tudo direitinho? Não estava aí tentando exibir os retratos que recebera, os presentes? Alex precipitou-se a interromper: claro, claro que sim, pelo amor de Deus não fosse eu interpretá-lo mal, pensar que ele nutria a mais leve dúvida a meu respeito: eu lhe merecia a mais absoluta confiança, punha as duas mãos no fogo pela futura-mãe-de-seus-filhos, meu lugar era encarapitada no alto do pedestal, impoluta, mulher de César pairando acima da mínima suspeita. Mas...
e aí ele empacou.
Mas o que?
Ora, bobagem, a culpa não era minha se ele me amava demais e isso o tornava vulnerável, cheio de tolices e caraminholas.
Mas que tolices, que caraminholas? Falasse claro, equívocos e ambiguidades não combinam com minha rude franqueza gaúcha, minha intolerância com os desvios, os caminhos tortuosos. A essas alturas eu já estava levemente impaciente, querendo saber que estranhos pensamentos andavam naquela cabeça que, de um momento para outro, começava a parecer-me menos confiável.
Só depois de muita lengalenga consegui por fim que desembuchasse, se é que é lícito usar essa palavra grosseiramente material para referir-se a sentimentos tão delicados. Tratava-se de uma questão de sensibilidade. Alex confiava em mim, mas sofria os tormentos do inferno à simples ideia de que outro homem se sentasse frente a frente comigo, olhando-me nos olhos, ouvindo-me falar, recebendo a dádiva de meu belo sorriso. Pensar em outro homem compartilhando tais "privilégios" era o bastante para deixá-lo doente.
De tão esbugalhados, meus olhos já não cabiam no rosto, eu balançava a cabeça de um lado para o outro e fazia barulhinhos bobos com a boca, incapaz de pronunciar uma palavra. Tudo aquilo me parecia incrivelmente absurdo. Jamais me passara pela mente a ideia de dividir a humanidade masculina em duas partes desiguais -Alex do lado de cá, os "Outros homens" do lado de lá, devendo eu mantê-los à distância o resto de minha vida. Eu gostava das pessoas, homens e mulheres, levava a sério a amizade e não conseguia vislumbrar um futuro no qual me fosse vetado o acesso, o contato, o convívio amistoso com metade do gênero humano e meu rosto devesse ocultar-se atrás de um chadour. Esse rosto que até então eu considerava público, sem que sua exposição aos olhares, fossem eles simpáticos ou não, lúbricos ou cordiais, admirativos ou indiferentes, me incomodasse ou lesasse quaisquer direitos, meus ou alheios. Era a primeira tentativa de privatizar meu rosto e aquilo me dava uma sensação esquisita, como se eu fosse um poço de petróleo ou um depósito de manganês, algo extremamente valioso, mas enfurnado debaixo da terra e que, uma vez desenterrado, se veria envolto num hálito sinistro de ambições, lutas de quadrilhas, traições, tiroteios, punhaladas, sangue.
E, além, de absurdo, injusto. Eu não fizera nada, não tentara magoar ninguém, e aquele rosto atormentado me transformava em algoz. O simples fato de eu existir no mundo e não dentro de um sarcófago - num mundo povoado de coisas simples e cotidianas como gente conhecida, uma família distante que me mandava presentes - um corte de seda estampada, livros, brincos, doces caseiros - um mundo com sua trama corriqueira de vínculos, nexos, ligações - bastava para dar-me uma espécie de poder nefasto e devastador. Apenas vivendo, simplesmente vivendo, respirando, movendo-me, eu me tornava daninha, perigosa, capaz de destruir um rosto - e quem sabe que coisas mais.
Páfate, me disse eu. Páfate, Carmen. Dentro de mim soavam campainhas de alerta, eu começava a compreender que um destino de joia e flor tem um preço: a joia é trancada no cofre, a orquídea fica encerrada na estufa: segurança é cadeia.
Teria sido mais fácil enfrentar proibições e exigências explícitas, um autoritarismo deslavado de não-gosto, não-quero, não-deixo que, naquela época, mulher nenhuma se atrevia a questionar abertamente porque fazia parte da inquestionável Ordem Natural das Coisas. Você se sente abusada e aguenta em silêncio porque não tem mais remédio e acumula raiva, enche as tripas de raiva, regurgita raiva, continua muda e usa a raiva para salgar a sopa dele, temperar seu assado, engomar suas camisas, envenenar seu leito, derrotar seus projetos. Séculos e séculos de raiva engolida forjaram a doçura do sorriso feminino, a suavidade de seu olhar, a curva de suas costas, o tom piegas de sua voz ao dizer sim querido, sim querido, para sempre sim querido.
Mas aí até o recurso da raiva me era negado, pois como podia rebelar-me, ainda que fosse só no fundo do coração, contra aquela adoração, exclusivista que me envolvia como uma túnica, aquele manto reverente de amor que me tolhia e imobilizava?
Olhei o rosto de Alex, esverdeado de insônia: suas faces brilhavam de nobreza. Mordi os lábios: eu era apenas uma jovem despreocupada e sem experiência, não podia ainda compreender a solenidade do momento, aquilo era muito mais do que um pequeno desentendimento entre namorados: estávamos vivendo uma cerimônia de iniciação. Com gesto ritual de quem entrega uma urna sagrada, Alex tratava de depositar em meus braços a herança que me cabia, a herança que cabe a todas as mulheres desde o começo dos tempos, a partir de Eva. O presente definitivo, redondo e liso como uma aliança: a culpa.
Eu era responsável pelo sofrimento estampado naquele rosto, eu seria eternamente responsável por cada uma de suas expressões, mutações, linhas, sulcos, marcas que o tempo viesse a imprimir nele, se um dia aquela nobreza se corrompesse a única responsável seria eu. Eu era responsável por um futuro brilhante ainda em promessa, se ele não se realizasse a culpa seria exclusivamente minha. Alex me oferecia em custódia a responsabilidade total por seu destino e pelo destino de todos os Alexinhos que viessem, da catapora ao crime, da coqueluche ao martírio.
Que um homem seja alienado ou terrorista, mau aluno ou toxicômano, sádico, imaturo, bolha, chifrudo, parasita, prepotente, impotente, a culpada invariavelmente é sua mãe: tu quoque, Freud! Cherchez la femme, sempre cherchez la femme, ela é a culpada de todos os sofrimentos do mundo, todas as dores, os fracassos, as diásporas, os holocaustos.
E é fundamental que ela o saiba, que se sinta culpada. Acho até que mulher "foi feita" para ser esposa e mãe justamente por isso: porque o casamento e a maternidade, exigindo dela mais tarefas, mais disponibilidade, mais energia, mais paciência e indulgência do que qualquer ser humano é capaz de dar, servem para realimentar diariamente sua carga de culpa, de modo a mantê-la sempre renovada e plena.
Sobre a toalha axadrezada do Bar del Cordón, Alex estendeu sua mão generosa para meus dedos manchados de pecado original, perdoando-me os males que eu não cometera:
- Não falemos mais nisso, não quero que você se preocupe com meus sentimentos, afinal são coisas minhas…
Levantei os olhos, dei com a sufocante nobreza de seu rosto e me senti um verme.
Alguns te espezinham com a noção de tua própria pequenez: mostram como você é inferior, perversa, rasteira, mesquinha. Outros simplesmente te colocam tão alto que você fica invisível lá em cima do pedestal. Invisível: justamente feito um verme, um piolho, um nada.
Apaguei um cigarro que Alex acendeu para mim. Junto com o resplendor da chama: um lugar-comum cruzou-me o cérebro como um raio: a gaiola de ouro.
Potinho d'água, alpiste, alface fresca, pão-de-ló, uma alisadinha na plumagem: piu piu passarinho. Um universo de trinta por cinquenta centímetros. Seguro, aconchegante. Mas nunca a alegria de um trino livre, um frêmito de asas na embriaguez do vôo.
A partir desse dia, a imagem da gaiola de ouro começou a virar obsessão. Um silencioso clamor de autopreservação se instalara em mim e eu olhava tudo com suspeita. Recebia de Alex um bilhetinho apaixonado, uma gentileza especial, um gesto de carinho e o primeiro que me vinha à mente era a gaiola de ouro. Eu me via rígida e imóvel pelo tempo afora, as mãos entrelaçadas, contemplando um mundo cruzado de barrotes. Finos, dourados, eternos, listrando o horizonte: minha única paisagem. Rejeitava a ideia, tratava de afastá-la, vivia dilacerada entre sentimentos contraditórios, não queria pensar: queria era casar, viver com Alex em legítima beatitude para todo o sempre, ser protegida e mimada por ele, tornar-me joia e flor.
Mas também queria cantar e voar.
E, sobretudo, queria escrever. Aquilo era como uma cócega que eu trazia nos dedos desde a infância. Não tinha outra certeza na vida, minha cabeça era um caos de fantasias românticas, noções incutidas, leituras mal assimiladas, aspirações ainda sem forma, sentimentos e desejos que me haviam ensinado a sentir e desejar - enfim, o que se poderia esperar de uma garota “de família” educada no Rio Grande e morando em Montevidéu no ano da graça de 1945. Mas de uma coisa, uma só coisa, eu estava absolutamente certa: queria escrever, tinha que escrever.
Um dia, não sabia quando.
Mas quando esse dia chegasse, eu tinha de estar disponível para ele, livre de expor à vista alheia muito mais do que o rosto e o "belo sorriso", sem que isso provocasse uma crise, livre de olhar sem interpostos barrotes um mundo que inclui os "outros homens", as experiências, os riscos. Queria escrever sem sofrer a sensação de estar sentada com meu gordo traseirinho oprimindo o peito de uma vítima e molhando a pluma no sangue de alguém - exceto, talvez, no meu próprio, se isso fosse inevitável.
Conste: àquelas alturas eu ainda não sabia da missa a metade. Só muito mais tarde vim a descobrir que toda a vez que uma mulher tenta fazer algo fora do trinômio cozinha-tricô-bordado - escrever um livro, pintar um quadro, empreender uma pesquisa, preparar uma tese ou um exame difícil - seu maridinho, bendito seja, cai com hepatite, virose, furunculose, angina pectoris, apendicite aguda ou qualquer outra doença, aliás, há sujeitos com uma saúde de cavalo que não conseguem mais do que uma simples coriza, mas que exige atenção e cuidados femininos em tempo integral. Ou ele entra numa orgia de sociabilidade, aceita mil convites em nome dos dois, oferece coquetéis e jantares - em casa, naturalmente - aos chefes, colegas, amigos, correligionários, antigos condiscípulos reencontrados por um feliz acaso, vizinhos cordiais, companheiros de torcida e alguns conhecidos de data recente mas gente muito legal, com quem vale a pena estreitar relações. Ou resolve dedicar-se à bricolage e faz da casa um caos invisível de fios, tijolos, pedaços de madeira, baldes, pincéis, ferramentas, perguntando vinte vezes por dia no momento em que a interrupção mais atrapalha: queridinha onde está a fita isolante e queridinha cadê aquele parafuso que eu tinha deixado aqui (e que certamente está no bolso dele) e queridinha será que dá pra você me arranjar uma lata vazia e queridinha onde é que você guarda o rolo de barbante - ao mesmo tempo em que atroa a casa inteira com marteladas nas paredes e algumas, não menos sonoras, nos próprios dedos. Ou é sua pobre mãe que adoece ou está velha e fraca demais para continuar sozinha e então ele vai, pega a santa velhinha e a deposita como um pacote nos braços da nora. Ou perde o emprego e mergulha de cabeça na maior fossa, obrigando a mulher a trabalhar horas-extras no emprego dela e ainda fazer curativos no esfolado ego dele. Ou ainda escolhe precisamente esse momento para pôr sobre o tapete a crise latente no relacionamento conjugal, tema que, num período mais oportuno, ela passou seis meses tentando abordar em vão, porque ele se esquivava cada vez.
E, naturalmente, ele dirá a todo mundo que tem o maior respeito intelectual pela mulher e muito orgulho dela.
Enfim, irmãzinha, case e depois você me conta.
Vamos tirar o chapéu à heroína que eu fui em pleno 1945, quando raríssimas mulheres concebiam outro objetivo na vida a não ser um destino de joia e flor, melhor refúgio que uma gaiola de ouro: enfrentei a parada. Em nome de uma abstração, renunciei a homem de carne e osso, rejeitei os dons oferecidos por um deus benevolente - e me escolhi.
E, no entanto, a meu modo, eu amava Alex. E chorava cachoeiras de lágrimas
quando lhe propus a ruptura, sem sequer saber explicar direito meus motivos, só atinando a dizer-lhe em tom meio alucinado que queria fazer coisas, fazer coisas na vida.
Alex, é claro, não entendeu coisíssima nenhuma. E quando pressionada para apresentar razões mais definidas, acabei alegando entre soluços que queria escrever, ele me olhou como se eu estivesse completamente maluca.
Depois, com toda a paciência e delicadeza, prometeu que compraria a mais bela escrivaninha que eu escolhesse e reservaríamos para ela o melhor lugar da casa, com boa luz, poltronas de couro e estantes de livros em volta.
Me pergunto se hoje, quase quarenta anos mais tarde, um homem em idêntica situação entenderia melhor. Para ser franca, acho que não. Aliás, isso me leva a refletir sobre outra questão. Reclamamos da insensibilidade de nossos homens, de sua rigidez emocional, sua escassa capacidade de viver e demonstrar seus próprios sentimentos. Alguns têm boa vontade e se esforçam nesse sentido, mas não dá certo. E não dá certo porque a sensibilidade associada ao poder, à estrutura psíquica e mental que aceita como legítimo ou que simplesmente exerce, por hábito, o poder sobre outra pessoa, converte-se numa arma a mais. Tirano sensível acaba mandando matar os infelizes para que sua sensibilidade não sofra com o espetáculo da infelicidade deles.
Seja como for, caí fora a tempo. A promessa de futuro brilhante se realizou, só que de forma torta ou em época errada. Duas vezes Alex chegou a ministro de estado, em duas pastas diferentes.
Infelizmente, depois que os gorilas tomaram conta do Uruguai.
Dessa eu escapei. Minhas amigam troçam dizendo que, casado comigo, talvez ele não houvesse engorilado. Conjectura lisonjeira mas irreal: é o marido que faz a cabeça da mulher. Aliás, acho até que eles casam é para isso e, se não o conseguem, o casamento não demora a ir para as cucuias. Como pode uma moça preservar individualidade dentro do casamento? O marido não deixa, a sociedade não deixa, o estereótipo não deixa, ela própria vai sentir-se monstruosa se pretender ser "Ela mesma": onde ficaria a entrega total, a integração de dois seres num só, dois corpos mas uma só "Alma", uma só consciência, uma única vontade. A dele, of course. Se eu me tivesse deixado embalar pelo canto da sereia, hoje a gorila-fêmea seria eu.
Badalativa, bem vestida, marcando com Deus e pela Família, achando a tortura justificada em nome da ordem - ou, mais provavelmente, preferindo ignorar que a tortura existe -, presidindo comitês de damas contra a pornografia e os maus costumes, clamando por mais rigor na censura porque a pouca-vergonha está demais.
O cúmulo: a gente começar se imaginando joia e flor e acabar virando King-Kong de saias.”