Quando eu me mudar. Quando eu arrumar a casa, quando as roupas estiverem dobradas e a louça limpa, tenho dito pra mim mesma, vou achar um jeito de me inspirar. Ensino como destravar a escrita, mas ainda não dominei um meio de chamar a musa pra me tocar e me fazer criar.
Acho que as redes sociais tem matado meu desejo de criar. Fiquei pra trás, não sou nem quero ser criadora de conteúdo, explicar a vida com cards pra ver se alguma marca se interessa pelo meu trabalho de graça. Me sinto numa menopausa existencial. Claro que a cabeça está ruim, a situação está ruim, como eu vou criar nesse cenário? Pois é justamente assim que eu criava antes, nas adversidades. Sobre elas. Agora tenho vergonha demais pra admitir as mazelas da vida. Um pouco porque aprendi que tem gente que gosta de ver os outros em uma vidinha de merda e não vou ser esse entretenimento. De novo, as redes sociais trazendo o pior à tona, escândalo, fofoca, a vida alheia. Cansadíssima disso, desinteressada de escândalos e fofocas, decepcionada com a política (menos com você, Erika Hilton) e cansada, muito cansada.
Da minha mudança também. Que caos, me sinto em uma novela. Agora tenho vários vizinhos de terreno e preciso conviver em pequena sociedade, o que me faz arrepiar. São várias pessoas na mesma casa, eu alugo a casa de cima. Meu banheiro próprio é um triste banheiro sem caída de água e com a pia dentro do box, que nem é box, é cortina de 19,90 mas quem sou eu pra reclamar, né? Esqueci de especificar ao universo que queria um banheiro de patricinha. "VOCÊ disse BANHEIRO PRÓPRIO", disse o universo em minha cara enquanto eu manejo o rodo pela enésima vez no dia. Isso eu tenho. Tanta gente sem banheiro próprio. Eu aqui reclamando. Pra vocês. Foi mal. Deixa eu resgatar alguma coisa bonita e inédita pra vocês.
Uma carta de amor antiga, de amor que virou rima
Amor da minha vida,
seus olhos de cão me acompanharam por toda a viagem, por cada colina, cada silêncio, cada vagalume, e em cada mineiro interiorano que passava eu via você. Você está sempre comigo: quando vejo coisa bonita, quando estou miserável, quando estou perdida, quando estou feliz. A única coisa que eu sempre quero é que você me escolha. Uma vez nesta vida. Uma. Há dez anos que te escolhi e te escolho todas as vezes, há dez anos que espero, espero, espero. Eu estou sempre aqui. Sempre estive, mesmo casada, mesmo grávida, mesmo sangrando e borrando seu travesseiro com rímel derretido quando você cuidou de mim no meio da minha loucura, mesmo indo embora, eu sempre estive aqui. Sigo acreditando em você, sempre em você, apenas em você. Em Minas me sinto mais próxima, não sei se são essas tecnologias, não sei se é o céu e o ar ou o raio que caiu no quintal da casa alugada, não sei se é o que sempre foi. Eu vejo as casinhas e nos imagino velhos morando nelas, os dois em paz, nós e as nossas solidões. Uma casinha no interior, com uma varanda grande, janelas com muita luz, minhas gatas dormindo ao sol, um quarto para os livros, umas cadeiras de balanço do lado de fora num lugar frio, mas com sol. Eu ainda estou aqui, e eu ainda quero morrer segurando a sua mão daqui há muito, muito tempo. Quero ficar velha, quero você velho comigo. Eu sou a única que pode suportar a sua loucura e a sua solidão. Às vezes acho que fiquei sã para isso; dois loucos não se sustentam. Mas um dia, quem sabe em 5, 10, 15 anos, eu quero estar com você de verdade, você, não suas poesias, não suas frases: você. Você é aquilo que eu não sei explicar, que eu não quero matar e que eu nunca quero perder.
Te amo como siempre, mi perro.
Sua,
c.
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Hoje é casado e um dos meus melhores amigos. Não quero morrer segurando mão nenhuma, quero morrer dormindo. Mas como era bonito quando eu sabia amar.
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Como aqui, pra mesma pessoa:
A casinha no Bixiga
eu soltaria todos esses passarinhos
e tiraria esses fio tudo
e teria mais plantinhas
e os gatos se lamberiam ao sol da tarde, mas só no inverno. eu leria pra você
e você leria pra mim, porque as vistas já estão comprometidas.
nós ouviríamos discos, você escolhe uma música, eu escolho outra, depois deixaríamos um disco inteiro e tocaria crazy da patsy cline e eu ia fazer ahhh e te apertar mais e mais como se
quisesse fundir em você
eu serviria mais uma dose pra virar o disco e
ahhhh
muito tempo se passaria ali. anos.
nossas peles enrugariam e nós contaríamos rugas, meu cabelo ficando vermelho demais no branco, você achando lindo de qualquer maneira.
até que você ficaria doente
e eu ficaria doente também, doente por causa da sua doença e nós veríamos as fotos de quando dançávamos na frente
daquele espelhão, os dois bonitos e jovens
eu ruiva e cabeluda ainda
você já se achando velho e cansado.
eu cozinharia para você
levaria as coisinhas que você não alcançasse
eu cuidaria de você mesmo doente também, porque eu sou forte.
um dia num fim de tarde você me chamaria e apertaria a minha mão.
e eu saberia.
sentaria ao seu lado, as lágrimas molhando as suas mãos manchadas
e você diria
“eu sempre te amei”
e
“nós fomos tão felizes aqui”
e eu fecharia os olhos sentindo a vida se esvaindo de você e você morreria segurando a minha mão que nem a gente
combinou há tanto tempo
e você diria
nada
porque estaria de olhos fechados e eu saberia que você não estava mais lá, e esconderia o rosto na sua mão com a maior dor da minha vida, apertando mas não muito, porque não teria forças.
uns dias depois minha doença pioraria
minha filha querendo me internar e eu dizendo nunca
quero morrer aqui, na nossa casinha.
então uma semana depois eu iria dormindo
e te encontraria em algum lugar bem bonito.
mas só
se a vida fosse numa casinha no bixiga.
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Bom, não tem casinha no Bixiga e esse amor não durou o tanto que eu imaginava, só uns 15 anos. Casada, grávida, casada de novo, era dele que eu gostava também. E era ele que me entendia. Ainda entende. Doido, né? Mas eu acredito que certos amores mudem, sabe? E é até melhor, porque amor de amigo é bem mais possível de ser eterno do que o amor romântico, que só falha.
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Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
Paulo Leminski, em Caprichos e Relaxos
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