Há um tempo comecei a me parecer com meu pai
Falando dos preços e reclamando do uso excessivo do papel higiênico
Há um tempo comecei a me parecer com minha mãe
Acordando cedo pra limpar bagunça de gato e mas na verdade querendo um tempo só
Há um tempo jamais me pareceria com minha avó
Olhando as rugas de perto e a silhueta no espelho depois de ficar viúva aos 40 e descobrir que a vida é boa aos 60
Há um tempo deixei de me parecer comigo
Porra louca sedenta de viver sem consequência sem freio na descida
Há um tempo talvez esteja me parecendo com meu avô que não conheci direito com mil coisas na cabeça e fazendo as ideias levantarem voo
Ou com meu outro avô que me chamava de Tico e não gostava de ter chefe
Com minha outra avó eu nunca me pareci, eu acho, cheia de pena de si, sempre reclamando
Hoje eu tenho um pouco de pena dela também, e de todas as mulheres avós de mulheres da minha idade
Que nem sabiam o que era subjetividade, identidade, independência
Minha bisavó indígena que foi entregue com 14 anos ao judeu que chegou de navio
Minha outra bisavó que era racista e me tirava do sério
Todas servindo e parindo, todas servindo e parindo
Como a outra bisavó que teve 7 filhos e criou sozinha enquanto o artista estava na estrada e morria nos trilhos salvando filhos de outra mulher
Saiu no jornal como herói
Minha bisa com os 7 filhos também era heroína, mas não saiu no jornal
Há um tempo tenho me parecido com meu pai
Sustentando a família com arte a duras penas e cansaço
Há um tempo tenho me parecido com minha mãe
Fazendo tudo em casa e fora dela
Há um tempo todas as responsabilidades de todas essas pessoas que vieram antes de mim têm aparecido
Há um tempo deixei de ser filha pra ser mãe de filha sem pai
Pior, com pai que traz um caminhão de lixo nas costas
Carregar tudo isso, todas essas pessoas no meu passado e na minha cabeça tem mexido comigo, que pari, mas não sirvo pra servir
Há um tempo tenho que escutar que sou péssima mãe, que falta amor, que eu bebo, que eu existo, caso, transo, vivo,
Há um tempo isso me afeta e me irrita pois só eu sei o que é ser eu.
Há um tempo guardei meus antepassados numa caixinha e disse:
Me deixem que agora é comigo.
Eu sei o que estou fazendo (quase sempre)
Há um tempo eu não voltei a ser eu; me transformei e ainda não voo, apenas duelo feito a mulher que vira búfalo, mas hei de virar borboletas.
Está gostando da newsletter? Considere mudar sua assinatura para paga! Custa só 10 reais e me ajuda a sustentar esse sonho impossível de viver da escrita no Brasil. Escrever é meu trabalho, colabore com ele <3
Se preferir mandar uns mimos por pix: cepontinho@gmail.com