Cresci e amadureci ouvindo muita música misógina, não nego. Como fugir disso, né?
Eu ouvia e achava que aquelas vagabundas que os caras versavam sobre, as que não valiam nada, praticamente apenas um entorno de buceta, eram as outras.
Não eu. Jamais eu. Eu era um dos caras. Eu era parça. Eu estava do lado deles. Eu jamais seria tratada daquela forma. A puta era a outra. A vagabunda era a outra. A outra. As outras todas, menos eu e minhas amigas, flocos de neve únicos que, apesar de terem nascido mulheres, eram diferentes & especiais.
O que eu queria mesmo era chegar naquela Clara e dizer: acorda, fia. Tal qual o Biff faz consigo mesmo quando entra no Delorean e volta no tempo com o almanaque de esportes. Toc toc toc, tem alguém aí? Tinha. Tinha eu tentando construir minha identidade sem referência nenhuma da mulher que eu gostaria de ser.
Porque se ser mulher era aquilo que me apresentavam, então eu não queria ser mulher.
Queria ser essa outra coisa. Essa mulher “com cérebro” que era “respeitada pelos homens”.
Ai, Clara. Ai, Clarinha.
Hoje vivemos em outra época. As mulheres iniciaram um diálogo, as mulheres começaram a se ouvir. Existem muitas mulheres feministas, adolescentes feministas, mães feministas criando novas pessoas dentro de uma outra lógica, pensando em igualdade de gênero, questionando papéis, querendo mudar as coisas. Somos várias, mas ainda somos poucas, eu sei. Somos pouquíssimas perto do oceano de senso comum que banha nossa sociedade. Mas o assunto está por aí, se espalha pela internet, pelos grupos, por tudo, invade a televisão e muitas revistas e jornais de grande circulação e a publicidade a ponto de tudo ser esvaziado pelo capitalismo, agora que feminismo vende. Uma lástima, uma tristeza, um empoderamento plastificado que não tem nada a ver com poder. É isso que o capitalismo faz com tudo: fagocita e esvazia.
E aí eu vejo meninas adolescentes e até mulheres com muito mais opções, acesso, informação, referências, exemplos de mulheres foda e a porra toda repetindo esse meu comportamento de vinte, eu disse VINTE anos atrás.
Ouvindo música ruim e misógina, música que fala que mulher é tudo puta, groupie, interesseira, que mulher é só um receptáculo de porra e espalhadora de ISTs. Vejo as meninas cantando isso. Comentando nas fotos dos otários que fazem essas letras. Pagando pau. Desejando esses homens.
Migas.
Eles não estão falando das outras. Eles estão falando de vocês.
A outra não existe. Nós somos todas essa outra. Nós somos a vagabunda.
Se você namora o cara agora e amanhã termina com ele, você vira a vagabunda.
Se você concorda com o cara hoje e amanhã bate de frente, adivinha? Você vira a vagabunda.
Se você der pra ele hoje e amanhã não quiser mais? Vagabunda.
Se você der pra ele hoje e amanhã ele não quiser mais? Vagabunda também.
Quem dera isso só tivesse a ver com sexo. É com tudo.
Peitou, perde o banquinho no cantinho do patriarcado que os caras te emprestaram. Discordou? Vai pra lá, pra fora da área que lhe era destinada, tão limitada, com uma voz tão baixinha. Afinal, você não vai querer ser como uma daquelas feministas, né? Aquelas não dá. Aquelas a gente não tolera. Aquelas não. Não vai sair da linha.
Pois bem, tenho algo a dizer sobre isso: se o lugar é cerceado, ele não nos pertence. Nosso lugar tem nos deixar livres pra sermos quem quisermos ser, sem medo.
Inclusive a vagabunda. .
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