A pornografia da violência
Sobre como narrativas de sofrimento de mulheres, pessoas racializadas e LGBTQIA+ causa mais furor do que nossas conquistas
Essa semana a atriz Jodie Foster criticou o estupro como alegoria dramática.
“Durante entrevista ao The Hollywood Reporter, a artista explicou como fica "sempre chocada" com a dependência excessiva da agressão sexual como fonte de motivação para as ações das mulheres em longas escritos por homens.”
"Durante a maior parte da minha carreira, sempre fiquei chocada com o fato de que em muitos dos roteiros que li, toda a motivação da personagem feminina era que ela havia sido traumatizada por estupro," criticou. "Essa parecia ser a única motivação que os roteiristas homens conseguiam encontrar para explicar por que as mulheres faziam as coisas. 'Ela está de mau-humor, sim, definitivamente houve algum estupro no passado.'"
"O estupro ou o abuso sexual pareciam ser o único tipo de história sinistra e emocional que eles conseguiam entender nas mulheres," continuou Foster. "E eu não levei isso para o lado pessoal. "Mas quando tive idade suficiente, consegui a responsabilidade de chegar e dizer: 'Você nem sempre conseguirá a personagem feminina mais perfeitamente desenvolvida, mas talvez haja uma oportunidade para trabalharmos juntos e criar algo assim?'"
Pois é.
Parece que obras feitas por mulheres, por pessoas negras, por LGBTs têm mais atenção quando tratam de violência. Vida e obra. Parece que nossas falas, junto com o horror e as hashtags, causam algum tipo de prazer obscuro. Não é explícito. Minha impressão, enquanto escritora que está há 20 anos rodando, é que a nossa dor mobiliza mais do que nossa alegria, nossa fantasia, nossa celebração.
É a pornografia da violência, da pobreza, da miséria, da morte, do sangue e do sofrimento. Como se a sociedade se isentasse de mudanças ou de responsabilidade apenas expressando uma indignação vazia.
Isso quando não nos diminuem. Quando não duvidam ou até nos culpam por nossas agruras. É assim com violência. Com estupro. Com fotos de pessoas agredidas, de preferência registrando o que aconteceu explicitamente, olho roxo, fraturas, machucados, sangue. Desde sempre o sensacionalismo vende. Melhor ainda se for contra "inocentes", crianças, grávidas, igrejas, talvez. Mas só igreja. Se for terreiro vai ter gente dando razão. Se for uma puta vai ter gente dando razão e achando pouco, se for uma mulher que bebeu ela estava pedindo, se for na favela é tudo bandido. Se for vítima de violência doméstica devia ter denunciado antes.
As obras literárias, cinematográficas, a poesia, a fotografia, se não registrarem essas dores, nem chamam a atenção.
A nós não é permitida a subjetividade da ficção. Subjetividade alguma, aliás. O dia-a-dia tem que ser violento para ser interessante, tem que ser denúncia, não pode ser uma alegria dividida, um olhar bonito, uma poesia. Não. Se for uma história baseada em fatos reais é melhor. Violenta, claro. Uma reportagem, um boletim de ocorrência, uma desgraça.
Não basta a realidade; tem que desdobrar a realidade em prismas de dor. Personagens que sofrem, as lágrimas das mães, os ossos quebrados das travestis que apanham. Tiro da polícia.
Do meu lugar de mulher branca morando na periferia, vejo o sofrimento a cada esquina. Nem preciso sair de casa. Nem preciso mesmo sair de casa, é só ler notícias, ver as redes de meus amigos que têm ainda a gana das ruas porque nem em casa é seguro, se eu não entrar em lugar algum ainda o sangue me chega por meio da indignação de alguém que acha que espalhando a violência vai acabar com ela.
Que absurdo!, eles dizem. E espalham mais sangue, talvez na inocência de achar que vai cessar diante de tantos mais "que absurdos".
A violência se torna normal. Nada mais é chocante. O sangue sendo lavado por baldes, as manchetes dando detalhes da violência contra uma criança de classe média enquanto outras tantas desapareceram por nada, mera questão de cor e classe, a mulher que apanhou do homem do Tinder. Apenas notícias. Logo vem outro horror. Nos acostumamos com o barulho.
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