Há 21 anos eu acordava de ressaquinha de um show dos Demônios da Garoa que assisti com meu pai pro maior dia dessa minha vida. Naquela noite seria o lançamento do Máquina de Pinball, meu primeiro livro, meu primogênito, escrito em 6 meses na febre literária que me acometeu ao buscar minha própria história quando cheguei em São Paulo. Eu estava na capa de cadernos de cultura do Brasil inteiro, com muitas críticas negativas de velhos brancos que não admitiam uma mulher no cercadinho dos homens e tinha um dos blogs mais lidos do país, o brazileira!preta. Por que o blog tinha esse nome se eu sou branca, né? Pois eis o tipo de coisa que eu recebia na época.
From: fabricionline@blah.com.br
To: clarah@cardosonline.com.br
Date: Saturday, June 23, 2001, 1:32:55 AM
Subject: triste
vc escreve mal, pra caramba, não faz coerência, não sabe usar do conhecimento
e da beleza das palavras, que quando direcionadas ligeramente e corretamente,
são espetaculares,
sua brazileira!preta
O e-mail foi tão absurdo que resolvi adotar o nome. Isso há mais de 20 anos, claro, hoje jamais passaria uma branca com um blog com esse nome. Os tempos eram outros, muito piores, diga-se de passagem.
Eu era acusada de UMBIGUISMO. Porque usava a vida como matéria prima. Nunca vi um homem ser desqualificado por isso, mas naquela época eu ainda não tinha tirado o véu do gênero da minha face, de forma que não enxergava as críticas como misóginas. Tenho todos esses recortes de jornal e me assombra como eu consegui não me abalar. Era porque eu tinha muita certeza do que estava fazendo. Eu já tinha me encontrado. Minha personagem é dona de um protofeminismo que negava as características que me apresentavam ser de uma mulher, fragilidade, frivolidade, falta de atitude… Tudo construção, é claro, mas eu ainda não tinha essa visão. E foi como foi.
As coisas mudaram tanto que, quando fui reeditar e republicar meus livros em pdf, senti necessidade de um prefácio, que divido aqui com vocês.
AVANTE!
O ano era 2001 e eu era uma garota que tinha largado uma vida confortável numa cidade segura para vir morar na selvagem São Paulo. Porque eu não queria uma cidade segura ou confortável - eu queria viver. Viver e escrever. Naquela época eu não pensava em termos de gênero e achava um grande elogio quando diziam que eu “escrevia como um homem”, já que minhas grandes referências eram, ora, homens. Homens que usavam suas vidas como matéria prima e eram aclamados como gênios, como heróis, invejáveis pedras fundamentais da literatura maldita ocidental. O homem livre, desapegado, o homem com vícios e que gostava de sexo era tudo de bom. O homem livre.
Mal sabia eu que mulheres não podiam ser tão livres assim. Nem em personagem. Sequer entendi por que criticavam meus escritos. Era comigo? Era minha personalidade? Minha imagem? Minha juventude? Meu desbocamento e total desprezo pelas regras? Nada disso, ou um pouco disso também: eu era mulher e estava saindo do cercadinho que nos era destinado.
Eu era uma mulher branca e privilegiada, mas também era uma mulher jovem e transgressora em um meio de homens brancos e caretas e um mundo que eu nem entendia ainda que era misógino. Isso fica bem cristalino na misoginia internalizada da minha personagem Camila, que aparece primeiro no Máquina de Pinball, depois em Vida de Gato e, finalmente, em Toureando o Diabo. Nos dois primeiros, ela quer ser um dos caras. Ela quer ser “macho”, sem “viadagem”. Um combo horroroso em tempos de discussões acerca de masculinidade tóxica, mas que, na verdade, significava muito mais o repúdio ao que me era, nos era, apresentado como feminino. Como ser mulher. Um conjunto de regras impossível de ser seguido. “Não seja como as outras”, minha mãe dizia. Na época, eu entendia que “as outras” eram inferiores, mulherzinhas, futilidade, fragilidade, docilidade, obediência. Nunca tive e nem quis ter nada com isso, e, sendo assim, criei uma personagem que era ainda mais afrontosa do que eu. Camila de moral flexível, Camila que peitava tudo e todos, até quando o coração fraquejava, Camila apaixonada, impulsiva, dona de si e cheia de ressacas morais e arrependimentos. Em 2001, 2002, 2003, 2004, nós não estávamos falando de feminismo a cada esquina e o entendimento de que o tal “feminino” é uma construção – bem branca – só veio bem mais tarde. Mas veio.
Quanto a mim, nos textos não ficcionais, também reproduzia muita lógica machista. Ela é, afinal, anterior a nós. Já estava assim quando eu cheguei, em 1979, lá no Rio Grande do Sul, que é um estado machista até o talo. E lá eu fui forjada, assim como Camila, peitando a tudo e a todos. E sigo, mais velha, mais consciente e com a plena certeza que evoluí como mulher, como ficcionista, como cronista, como tudo. E junto veio uma legião de leitores e leitoras que me acompanha desde as priscas eras de um dos primeiros blogs do Brasil.
Estamos aqui, estamos melhores, temos mais e mais a combater e certamente, mas certamente mesmo, mulher alguma que foi liberta do pensamento machista que é entranhado em nós desde a tenra idade vai voltar pro cercadinho.
Algumas dessas reedições foram levemente revisadas para que o inaceitável não perdurasse. Fico feliz de estar viva para poder fazer isso. Levemente, eu disse; não quero mexer no que considero o retrato do pensamento de uma época.
Espero que gostem. Eu estou bem feliz e a Camila também.
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Fui criticada por isso também. Onde já se viu mexer em livro já escrito? Bom, eu tô viva, minha obra está viva e eu não ia deixar circular um livro com um trecho que me constrangia. Sei que cabe na boca da personagem, sei que Camila não precisa se desculpar, mas julguei por bem mudar e mudei. É meu livro, porra.
21 anos depois, sou o que queria ser. Eu nem sabia que ia viver tanto, já que era tão autodestrutiva que só conseguia me imaginar (belíssima) até antes dos 30, sei lá se querendo ser estatística de artista que morre jovem. Ainda bem que eu não morri. 21 anos depois eu sou escritora e a máquina segue firme. Depois de ouvir que o que eu fazia não era literatura, depois de anos aguentando um monte de macho pedante em eventos literários, depois de anos e anos, cá estou. Ainda escritora. Sinto falta das noites febris de escrita que passei na juventude, meu jeito de escrever mudou, eu mudei, o mundo mudou. Agora meus processos são mais lentos, me causam ansiedade, esse mal da vida moderna, me causam inseguranças, me causam estranheza. Mas é isso, são processos e é só passando por eles que se aprende.
Não lanço livro desde 2018. O último foi o infantil A Revolução da Ariel, feito em parceria com a ONG PLAN International Brasil. Inclusive comprem, pois a renda vai toda para a Escola de Liderança para Meninas. Estou escrevendo um novo desde 2021, chamado EU AINDA QUERO QUE VOCÊ MORRA. Em caixa alta mesmo. É forte, é uma história de gaslight e abusos e está saindo a passo de tartaruga, o que me deixa ansiosa, pois sinto que, se não publicar, eu DESAPAREÇO. Por onde anda a sumida da Clara? Eu não tô sumida, só esquecida por não conseguir seguir o ritmo frenético dos tempos modernos. Um dia eu termino. Por enquanto, meu plano é organizar uma coletânea dos meus últimos 10 anos, incluindo o saudoso e finado Lugar de Mulher, as colunas da Revista Donna, do Hysteria, e de outros lugares para os quais escrevi nos últimos anos. Não quero mais saber de autopublicação, estou até hoje entregando livros de financiamento coletivo que enrolou minha vida (se eu te devo livro, me escreve, por favor!). Foi um caos, um caos, e ano passado, nesta mesma data, lancei uma edição comemorativa do Máquina de Pinball… Que ainda falta entregar pra umas 20 pessoas. Não quero, não consigo, não vou mais me meter a fazer coisa que não sei, logística, estoque, envios, tudo isso me tira do centro, que é escrever, e me causa uma sensação de imenso fracasso. A autopublicação foi ideia minha, já entendi, agora quero voltar pro colo quentinho de uma editora que vai ficar com 40% do preço de capa, de uma livraria que vai ficar com 50% e me resignar aos 10% destinados ao autor, que, claro, precisa de outros trabalhos pra bancar sua profissão. É assim que é.
21 anos depois, sigo firme e digo com certeza: a Clarah de 22 anos tem muito orgulho da Clara de 44. Avante, avante!
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