Em 2009 eu fiquei grávida em um relacionamento que já estava fadado ao fracasso. Mas, ainda refém de uma ideia torta de família, quando meu namorado disse “vamos nessa", eu pensei: então vamos. Por algumas semanas decidi levar adiante aquela gravidez, mas logo ficou claro: eu ia acabar sozinha com mais uma criança. Eu já tinha uma filha pequena, já me esfalfava para criá-la. Aí fui atrás de um aborto. Acabei encontrando uma clínica e um médico que me deixou muito segura com a minha decisão. Arrumei o dinheiro, 1500 reais na época. Fiz. Não me arrependo. Agradeço. Não teria condições nem financeiras e nem psicológicas de criar mais um filho. Não queria. Na época, meu então namorado me abandonou sangrando e foi embora de casa assim que chegamos da clínica. Isso que me abalou. Não o aborto. O aborto foi um alívio, um ato de auto-amor. O abandono me jogou numa depressão bem horrível. Mas saí dela. Vivona. Porque tive a sorte e o privilégio de encontrar aquela clínica, aquele médico. Mas e quem não tem esse acesso? Ali começou minha militância.
Amanhã, dia 28 de setembro, é o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Pela Legalização do Aborto. Sairemos às ruas exigindo direito sobre nossos corpos.
O aborto sequer deveria ser crime; deveria ser legal, seguro, realizado na rede pública inclusive naqueles casos extremos em que a pessoa está grávida e não quer levar adiante a gestação. Em todos os casos. Em qualquer caso.
Não, não é “só se proteger”. Métodos anticoncepcionais falham. Interações medicamentosas podem anular o efeito de várias pílulas, inclusive engravidei nessa situação: tomando pílula. Mas em um país em que grupos conservadores e fanáticos se recusam a discutir gênero e sexualidade, eu nem sei o que será de nós, já que não se deve falar nisso.
Uma pessoa que quer fazer um aborto não está interessada na sua opinião. E aborto não é uma questão nem de opinião, nem de religião, nem de crença: é uma questão de saúde pública.
Uma pessoa não vai deixar de abortar porque você é contra, acha que é uma vida e todos têm direito à vida. Vá cuidar da sua, então. Uma pessoa que quer fazer aborto vai fazer esse aborto.
Ou vai tentar e se estrepar. Vai tentar numa clínica ou em casa com remédios de origem duvidosa ou enfiando uma agulha de tricô no útero e depois morrendo de medo de ir ao SUS fazer uma curetagem, ser denunciada e presa. Uma pessoa que estiver passando pelo desespero de uma gravidez indesejada vai colocar sua vida em risco porque o Estado não nos dá o direito de escolher legalmente o que queremos, então burlamos a lei. Imagina então o que acontece com quem não tem nenhum dinheiro. Com as pessoas negras, pobres, da periferia.
A quem argumenta que “aborto vai virar método contraceptivo”: não sei nem o que dizer pra vocês. Primeiro que “contraceptivo” significa para evitar a gravidez, não para interrompê-la. Quem coloca em pauta uma possível “banalização do aborto” nunca parou pra ver os dados de países que legalizaram o procedimento, como foi o caso do Uruguai. Sabe o que aconteceu? As mulheres que abortariam ilegalmente correndo risco de vida abortaram de forma legal e segura e não morreram. Nenhuma mulher morreu. E sabe o que mais? Os números de abortos realizados caíram.
Quem é contra o aborto que não faça um. Mulheres seguirão abortando e colocando suas vidas em risco. Mulheres que já são mães podem morrer e deixar uma família órfã. Mulheres que não querem ser mães também podem morrer. Mulheres abortam todos os dias de forma insegura. Adolescentes abortam, mulheres adultas abortam, católicas, evangélicas, candomblecistas, umbandistas e budistas abortam. Homens trans abortam. Só quem está nessa situação sabe o que é o desespero de uma gravidez indesejada.
Vou lembrar aqui que métodos anticoncepcionais falham, mas pessoas também podem vacilar. Elas devem pagar com a sua vida por isso? Engraçado, não vejo os homens, que frequentemente se recusam a usar camisinha porque “acabaram de fazer exames” ou “são limpos”, ou seja qual desculpa que arrumem, sendo cobrados. A contracepção está sempre nas nossas costas. Encapar o pinto é uma dificuldade, né? E até parece que o único perigo é a gravidez.
O aborto legal no Brasil, em caso de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto, é dificultado por todo um sistema burocrático e moralista que coloca inclusive meninas vítimas de estupro em uma situação de vulnerabilidade extrema. Não é fácil só porque é legal; basta ver os casos de religiosos se enfiando onde não são chamados para tentar impedir que se cumpra um direito garantido por lei. O aborto tem que ser legal e para todas as pessoas que gestam.
Existe um surto de sífilis porque as pessoas acham que são imbatíveis e não vai acontecer com elas. Bom, colega, pode acontecer. Com qualquer um. Com qualquer uma. Sempre me deparo com comentários dizendo que mulheres que tentam abortar devem mesmo morrer. Além da ignorância e da percepção de que a vida da mulher não vale nada, isso também demonstra uma atitude punitivista com a mulher que faz sexo. Deu? Agora aguenta. Ninguém pergunta onde está o homem que engravidou. Ninguém quer saber se ele se protegeu, se ele se preocupou. Diante dos olhos desse terrível senso comum, ao homem não cabe nenhuma responsabilidade quando o assunto é contracepção.
Dito isso, estarei nas ruas amanhã em nome não só do aborto, mas de todos os direitos sexuais e reprodutivos que nos são negados. Bora?